Un réel pour le XXI sciècle
ASSOCIAÇÃO MUNDIAL DE PSICANÁLISE
IX Congresso da AMP • 14-18 abril 2014 • Paris • Palais des Congrès • www.wapol.org

TEXTOS DE ORIENTAÇÃO
Apresentação do tema do IX Congresso da AMP
por Jacques-Alain Miller

Jacques-Alain MillerNão os farei esperar muito tempo pelo tema do próximo Congresso. Uma nova série de três temas foi iniciada com "A ordem simbólica no século XXI"[1]. Será uma série especialmente dedicada ao aggiornamento, como se diz em italiano, à atualização de nossa prática analítica, de seu contexto, de suas condições, de suas coordenadas inéditas no século XXI, quando cresce o que Freud chamou de "o mal-estar na cultura" e que Lacan decifrava como os impasses da civilização.

Trata-se de deixarmos para trás o século XX, deixá-lo para trás de nós para renovar nossa prática no mundo, ele mesmo suficientemente reestruturado por dois fatores históricos, dois discursos: o discurso da ciência e o discurso do capitalismo. São os dois discursos prevalentes da modernidade que, desde o início, desde o aparecimento de cada um, começou a destruir a estrutura tradicional da experiência humana. A dominação combinada dos dois discursos, cada um se apoiando no outro, tem crescido a tal ponto que essa dominação tem conseguido destruir, e talvez romper, até os fundamentos mais profundos de tal tradição.

Temos visto isso, ao longo deste Congresso, com o desarranjo da ordem simbólica cuja pedra angular, ou seja, o Nome-do-Pai, se trincou. A pedra angular que é, como disse Lacan com uma extrema precisão, o Nome-do-Pai segundo a tradição. Este foi tocado, desvalorizado pela combinação desses dois discursos, o da ciência e o do capitalismo. Pode-se dizer agora que o Nome-do-Pai, famosa função-chave do primeiro ensino de Lacan, é uma função conhecida em todo campo analítico, seja ele lacaniano ou não.

O próprio Lacan rebaixou, depreciou essa função-chave, o Nome-do-Pai, ao longo de seu ensino, acabando por fazer dele nada mais do que um sinthoma, isto é, a suplência de um furo. Diante desta assembleia, pode-se dizer, de modo abreviado, que esse furo colmatado pelo "sintoma Nome-do-Pai" é a inexistência da relação sexual na espécie humana, na espécie dos seres vivos que falam. E o rebaixamento do Nome-do-Pai na clínica introduz uma perspectiva inédita que Lacan expressa dizendo: "Todo mundo é louco, isto é, delirante"[2]. Não é uma zombaria. Traduz a extensão da categoria da loucura para todos os falantes que sofrem da mesma carência de saber concernente à sexualidade. Esse aforismo é o que repartem as chamadas estruturas clínicas: neurose, psicose, perversão. E certamente faz tremer, abala a diferença, entre neurose e psicose, que até agora era a base do diagnóstico psicanalítico, tema inesgotável dos ensinos.

Para o próximo Congresso, proponho que entremos mais nas consequências de tal perspectiva, estudando o real no século XXI. Desta palavra, "real", Lacan faz um uso que lhe é próprio, que nem sempre foi o mesmo e que devemos esclarecer, inclusive para nós mesmos. Mas creio que há uma forma de dizê-lo que tem uma espécie de evidência intuitiva para cada um dos que vivem no século XXI, mais além de nós, lacanianos. Pelo menos, é uma espécie de evidência para os que foram formados no século XX e que, agora, por certo tempo, pertencem ao século XXI.

Há uma grande desordem no real.

É mesmo essa fórmula que proponho para o Congresso de 2014, em Paris: "Uma grande desordem no real no século XXI". E quero agora compartilhar com vocês os primeiros pensamentos que me provoca esse título cuja formulação encontrei há dois dias. Arrisco esses pensamentos para lançar nossa discussão da Escola Una e que vai durar dois anos. Certamente, eles não são para encerrar essa discussão.

O primeiro pensamento que me ocorreu a esse respeito, acolhido como me veio, é o seguinte: outrora, o real se chamava natureza. A natureza era o nome do real quando não havia desordem no real. Quando a natureza era o nome do real, podia-se dizer, como Lacan o fez, que o real volta sempre ao mesmo lugar[3]. Entretanto, nessa época em que o real se disfarçava de natureza, ele parecia a manifestação mais evidente e mais elevada do conceito mesmo de ordem.

Ao retorno do real ao mesmo lugar, Lacan opunha o significante, na medida em que este é caracterizado pelo deslocamento, pela Enstellung, tal como Freud dizia. O significante se conecta, se substitui de modo metafórico ou metonímico e sempre retorna em lugares inesperados, surpreendentes.

Ao contrário, o real, nessa época em que se confundia com a natureza, caracterizava-se por não surpreender. Podia-se esperar tranquilamente seu aparecimento no mesmo lugar, na mesma data. É o que indicam os exemplos de Lacan para ilustrar o retorno do real no mesmo lugar. Seus exemplos são o retorno anual das estações, o espetáculo do céu e dos astros. É o que serviu de modelo para toda a Antiguidade, nos rituais chineses que utilizam os cálculos matemáticos para a medição dos astros, etc. Pode-se dizer que, nessa época, o real como natureza tinha a função de Outro do Outro, ou seja, ele era a própria garantia da ordem simbólica.

Assim, a agitação retórica do significante no dizer humano se verá enquadrada por uma trama de significantes fixos como os astros. A natureza – esta é sua própria definição – se define por estar ordenada pela conjunção do simbólico e do real. A tal ponto que, segundo a tradição mais antiga, toda ordem no humano devia imitar a ordem natural. É sabido, por exemplo, que a família como formação natural servia de modelo à ordenação dos grupos humanos e que o Nome-do-Pai era a chave do real simbolizado.

Não faltam exemplos desse papel da natureza na história das ideias. Eles são tão abundantes e temos tão pouco tempo que não vou me estender nisso hoje; são pontos para se aprofundar. É preciso investigá-los através da história da ideia de natureza, seguindo-a como ordem, como real. Por exemplo, o mundo da física de Aristóteles[4] se ordena em duas dimensões invariáveis: o mundo de cima, separado do mundo sublunar, como se diz, cada ser buscando ali seu próprio lugar. É assim que funciona essa física que é uma tópica, ou seja, um conjunto de lugares bem fixos.

Com a entrada do Deus da criação, digamos assim, do Deus cristão, a ordem permanece vigente na medida em que a natureza criada por Deus responde à sua vontade. Ainda que não exista mais a separação dos dois mundos aristotélicos, a ordem divina persiste, ordem divina que é como uma lei promulgada por Deus e encarnada na natureza.

Daí, impõe-se o conceito de lei natural. E preciso ver isso do lado de São Tomás de Aquino e de sua definição de lei natural[5] que dá lugar a uma espécie de imperativo. Digamo-lo em latim: noli tangere – não tocar na natureza. Porque havia o sentimento de que se podia tocar na natureza, de que havia atos humanos que contrariavam a lei natural, particularmente os atos de bestialidade contra os quais se colocava o imperativo de não tocar na natureza. E embora este não seja o sentimento da maioria aqui, devo dizer que considero admirável como ainda hoje a Igreja Católica luta para proteger o real, a ordem natural do real, nas questões relativas à reprodução, sexualidade, família, etc. Certamente, são elementos anacrônicos, mas que testemunham a duração, a solidez desse velho discurso. Poder-se-ia dizer que isso é admirável como causa perdida, porque todo mundo sente que real escapou da natureza.

Desde o início, a Igreja havia percebido que o discurso da ciência ia tocar o real que ela protegia como natureza. Porém, não foi suficiente encarcerar Galileu para deter a irresistível dinâmica científica, tampouco foi suficiente qualificar de turpitudo a avidez pelo lucro para deter a dinâmica do capitalismo. É São Tomás que utiliza a palavra latina turpitudo para o progresso.

Causa perdida? Lacan dizia também que a causa da Igreja anunciava, talvez, um triunfo[6]. Por que? Porque o real emancipado da natureza é ainda pior, uma vez que se torna cada vez mais insuportável. Há uma espécie de nostalgia da ordem perdida que, embora não possa ser recuperada, continua vigente como ilusão.

Antes do próprio aparecimento do discurso da ciência, nota-se a emergência de um desejo de se tocar o real agindo sobre a natureza, fazendo-a obedecer, mobilizando e utilizando sua potencia. Como? Antes da ciência, um século antes do aparecimento do discurso científico, esse desejo se manifestava no que era chamado de magia. A magia é bem diferente do truque do escamoteador que convocamos para distrair as crianças. Lacan a considerava tão importante que, no último texto dos Escritos, "A ciência e a verdade"[7], inscreve a magia como uma das quatro condições fundamentais da verdade. Magia, religião, ciência e psicanálise, quatro termos que antecipam algo dos célebres "quatro discursos"[8].

Lacan define a magia como o apelo direto ao significante que está na natureza, a partir do significante do encantamento. O mago fala para fazer falar a natureza, para perturbá-la, e isso já é infringir a ordem divina do real de tal modo que os magos foram perseguidos, assim como a magia foi considerada uma bruxaria. Mas essa magia, a moda da magia, já era a expressão de uma aspiração ao discurso científico. Essa foi a tese da erudita de Frances Yates, que considera que o hermetismo foi uma preparação para o discurso científico[9]. É um fato histórico que o próprio Newton foi um eminente alquimista. Retomando os trabalhos do economista John Maynard Keynes sobre Newton, Frances Yates indica que Newton havia dedicado mais anos à alquimia que às leis da gravitação[10]. Evoco isso como pontos a serem estudados, nesse ramo da história da ciência. Porém, seguiremos melhor Alexandre Koyré, que insiste na seguinte diferença: a magia faz falar a natureza enquanto que a ciência a faz se calar[11]. A magia é encantamento, ocultação, retórica. Com a ciência, passa-se da fala para a escrita, conforme o enunciado de Galileu: "a natureza está escrita em linguagem matemática"[12].

É preciso recordar que, no final de seu ensino – quando já não tinha a ambição de tornar científica a psicanálise – Lacan não hesitava em perguntar se a psicanálise não seria uma espécie de magia. Ele disse isso uma vez, mas é um eco a ser considerado. Com isso, começa certamente uma mutação da natureza, e podemos expressá-la com o aforismo de Lacan: "há saber no real"[13]. É esta a novidade: alguma coisa está escrita na natureza.

Continuou-se falando de Deus e da natureza, mas Deus não é nada mais que um sujeito suposto saber, um sujeito suposto ao saber no real. A metafísica do século XVII descreve um Deus do saber que calcula, como diz Leibniz[14], ou que se confunde com esse cálculo, como diz Spinoza[15]. De todo modo, trata-se de um Deus matematizado.

Direi que a referência a Deus permitiu, ao velar a velha ilusão de Deus, a passagem do cosmo finito ao universo infinito. Com o universo infinito da física-matemática, a natureza desaparece; com os filósofos do século XVIII, ela retorna somente como uma instância moral. Com o universo infinito, a natureza desaparece e o real começa a desvelar-se.

Tenho me interrogado sobre a fórmula "há saber no real". Seria tentador dizer que o inconsciente está nesse nível. Porém, ao contrário, a suposição de um saber no real me parece um último véu que precisa ser levantado. Se há um saber no real, há uma regularidade que o saber científico permite prever. O saber científico permite prever. Ora, ele tem orgulho de prever, na medida em que isso demonstra a existência de leis e que não é necessário um enunciador divino para que elas permaneçam vigentes. E é através dessa ideia de leis que se tem mantido a velha ideia da natureza na própria expressão "as leis da natureza".

Einstein, como relata Lacan[16], se referia a um Deus honesto, que rejeita todo acaso. Foi sua maneira de se opor às consequências da física quântica de Max Planck[17]; foi, para Einstein, uma tentativa de reter o discurso da ciência e a revelação do real.

Pouco a pouco, a física teve de dar lugar à incerteza probabilística proveniente da economia, assim como a um conjunto de noções que ameaçam o sujeito suposto saber. Tampouco foi possível tornar equivalentes o real e a matéria. Com a física subatômica, os níveis da matéria se multiplicam e, podemos dizer, tanto o A de "a matéria" como o A de "a mulher" se desvanecem.

Talvez, eu possa arriscar aqui um curto-circuito. Com respeito à importância das leis da natureza, entende-se o estrondoso eco que deveria ter o aforismo de Lacan "o real é sem lei"[18]. Essa é a fórmula que testemunha uma total ruptura entre natureza e real. Ela é um ataque à inclusão, do saber no real, que mantém a subordinação ao sujeito suposto saber.

Na psicanálise, não há saber no real. O saber é uma elucubração sobre o real desprovido de todo suposto saber. É isso, pelo menos, que Lacan inventou como o real, a ponto de se perguntar se esse não era seu sintoma, se essa não era a pedra angular que o fazia manter a coerência de seu ensino.

O real como sem lei parece impensável. É uma ideia-limite e que, primeiramente, quer dizer que o real é sem lei natural. Por exemplo, tudo o que havia sido a ordem imutável da reprodução está em movimento, em transformação. Tanto no nível da sexualidade quanto da constituição do ser vivo humano, com todas as perspectivas que aparecem agora, no século XXI, para melhorar a biologia da espécie.

O século XXI anuncia-se como o grande século da bioengineering que tornará possível todas as tentações do eugenismo. E a melhor descrição do que experimentamos agora de modo evidente continua sendo o que Karl Marx disse em seu Manifesto Comunista sobre os efeitos revolucionários do discurso do capitalismo na civilização. Gostaria de ler algumas frases de Marx que ajudam em uma reflexão sobre o real:

"A burguesia não pode existir sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, ou seja, as relações de produção, isto é, o conjunto das relações sociais... [há] esse constante abalo de todo o sistema social.. Todas as relações sociais, fixadas e veneradas, se dissolvem".

Em seguida, temos a melhor expressão da ruptura com a tradição: "tudo que é sólido desmancha-se no ar, tudo que é sagrado é profanado..."[19].

Direi que capitalismo mais ciência se combinaram para fazer desaparecer a natureza e o que resta do desvanecimento da natureza é o que chamamos de real, ou seja, um resto, por estrutura, desordenado. Toca-se o real em todos os lados, segundo os avanços do binário capitalismo-ciência, de maneira desordenada, por acaso, sem que se possa recuperar uma ideia de harmonia.

Houve um tempo em que Lacan ensinava o inconsciente como um saber no real, quando o dizia estruturado como uma linguagem. Nessa época, buscava as leis da fala, as leis do significante, a relação de causa-efeito entre significante e significado, entre metáfora e metonímia, baseado na estrutura do reconhecimento em Hegel: reconhecer para ser reconhecido. Também apresentava e ordenava esse saber em grafos, sob a proeminência do Nome-do-Pai na clínica e sob o ordenamento fálico da libido.

Mas, depois, outra dimensão foi aberta com lalíngua, na medida em que há leis da linguagem, mas não há leis da dispersão e da diversidade das línguas. Cada língua é formada por contingências, por acaso. Nessa dimensão, o inconsciente tradicional – para nós, o inconsciente freudiano – vai nos aparecer como uma elucubração de saber sobre um real; uma elucubração transferencial de saber, quando se superpõe a esse real a função do sujeito suposto saber que outro ser vivo se presta a encarnar. É o inconsciente que pode ser ordenado, como discurso, mas somente na experiência analítica. Direi que a elucubração transferencial consiste em dar sentido à libido, que é a condição para que o inconsciente seja interpretável. Isso supõe uma interpretação prévia, isto é, que o próprio inconsciente interpreta.

O que o inconsciente interpreta? Para poder responder essa questão, é preciso introduzir um termo, uma palavra. Essa palavra é "o real". Na transferência, introduz-se o sujeito suposto saber para interpretar o real. A partir daí, constitui-se um saber não no real, mas sobre o real. Aqui, situamos o aforismo: "o real é desprovido de sentido"[20]. Não ter sentido é um critério do real, na medida em que, quando alguém chega ao fora de sentido, é que se pode pensar que ele saiu das ficções produzidas por um querer-dizer. "O real é desprovido de sentido" é equivalente a: o real não responde a nenhum querer-dizer. O sentido lhe escapa. Há doação de sentido através da elucubração da fantasia.

Os testemunhos do passe, essas joias dos nossos Congressos, são relatos da elucubração da fantasia de alguém, e de como ele exprime e refaz a experiência analítica para reduzi-la a um núcleo, a um pobre real, que se apaga como o puro encontro com lalíngua e seus efeitos de gozo no corpo. Ele se apaga como um puro choque pulsional.

O real, entendido assim, não é um cosmo, não é um mundo, nem uma ordem; é um pedaço, um fragmento assistemático porque separado do saber ficcional produzido a partir desse encontro. E esse encontro de lalíngua e do corpo não responde a nenhuma lei prévia; é contingente e sempre perverso. Esse encontro e suas consequências (que são o que resta vigente como sonho), porque tal encontro se traduz por um desvio do gozo com relação ao que o gozo deveria ser.

O real inventado por Lacan não é o real da ciência. É um real ao acaso, contingente, na medida em que falta a lei natural da relação entre os sexos. É um furo no saber incluído no real.

Lacan utilizou a linguagem matemática que é a mais favorável à ciência. Nas fórmulas da sexuação, por exemplo, procurou captar os impasses da sexualidade em uma trama lógico-matemática. E isso foi uma tentativa heroica para fazer da psicanálise uma ciência do real tal como é a lógica. Porém, não se pode fazer isso sem encarcerar o gozo na função fálica, em um símbolo. Implica uma simbolização do real, implica referir-se ao binário homem-mulher como se os seres vivos pudessem estar repartidos tão nitidamente, mas já vemos, no real do século XXI, uma desordem crescente da sexuação.

E isso é uma construção secundária que intervém depois do choque inicial do corpo com a lalíngua que constitui um real sem lei, sem regra lógica. A lógica se introduz somente depois, com a elucubração, a fantasia, o sujeito suposto saber e a psicanálise.

Até agora, sob a inspiração do século XX, os casos clínicos, tal como os expressamos, são construções lógico-clínicas sob transferência. Porém, a relação causa-efeito é um preconceito científico apoiado no sujeito suposto saber. A relação causa-efeito não vale no nível do real sem lei, ela só vale com uma ruptura entre a causa e o efeito.

Lacan o dizia com um repente (boutade): "se alguém entende como a interpretação funciona, não é uma interpretação analítica"[21]. Na psicanálise, tal como Lacan nos convida a praticá-la, experimenta-se a ruptura do laço causa-efeito, a opacidade do laço, e é por isso que falamos de inconsciente.

Vou dizê-lo de outra maneira. A psicanálise transcorre no nível do recalcado e da interpretação do recalcado graças ao sujeito suposto saber. Porém, no século XXI, cabe à psicanálise explorar outra dimensão: aquela da defesa contra o real sem lei e fora de sentido. Lacan indica essa direção com sua noção do real tal como Freud o faz com o conceito mítico da pulsão. O inconsciente lacaniano, o do último Lacan, está no nível do real e, vamos dizer assim, por comodidade, "abaixo" do inconsciente freudiano, de modo que, para entrar no século XXI, nossa clínica deverá se concentrar em desmontar a defesa, desordenar a defesa contra o real.

Em uma análise, o inconsciente transferencial é uma defesa contra o real. Porque, no inconsciente transferencial, continua vigente uma intenção, um querer dizer, um querer que me seja dito algo enquanto que o inconsciente real não é intencional, mas se encontra sob a modalidade do "é assim". Este, pode-se dizer, é como nosso "Amém".

Várias questões vão se apresentar a nós, no próximo Congresso: a redefinição do desejo do analista, que não é um desejo puro, como diz Lacan[22], não é uma pura metonímia infinita, mas que nos aparece como um desejo de se chegar ao real, de reduzir o Outro a seu real e liberá-lo do sentido.

Acrescentarei que Lacan tentou representar o real como um nó borromeano. Perguntaremos: o que essa representação vale? Para que ela nos serve agora? Para Lacan, esse nó, a paixão pelo nó borromeano, serviu para chegar a essa zona irremediável da existência, a mesma zona de Édipo em Colono[23], na qual se apresenta a ausência absoluta de caridade, de fraternidade, de qualquer sentimento humano.

É para aí que nos leva a busca do real despojado de sentido.

  1. N.T.: Trata-se do VIII Congresso da AMP, realizado em Buenos Aires, entre os dias 23 e 27 de abril de 2012.
  2. LACAN, J. Transferência para Saint Denis? Correio, revista da Escola Brasileira de Psicanálise, n. 65, São Paulo, p. 31-32.
  3. N.T.: LACAN, J. O seminário. Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise(1964). Rio de Janeiro: Zahar, 1988, p. 52 e ss.
  4. N.T.: ARISTÓTELES. Física I e II. São Paulo: UNICAMP, 2009.
  5. N.T.: Ver, especialmente, as questões 90 a 97 da I Seção, Parte II da Suma Teológica, obra já traduzida integralmente no Brasil: TOMAS DE AQUINO. Suma Teológica, v. 4. São Paulo: Loyola, 2005.
  6. N.T.: LACAN, J. O triunfo da religião (1974), precedido de Discurso aos católicos (1960). Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p. 64 e ss.
  7. LACAN, J. A ciência e a verdade (1966). In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p. 869-892.
  8. N.T.: LACAN, J. O seminário. Livro 17: o avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Zahar, 1992.
  9. Cf. YATES, F. La philosophie oculte à l'époque élisabéthaine. Paris: Dervy, 1987. N.T.: Em português, dessa mesma autora, temos traduzido: Giordano Bruno e a tradição hermética (Cultrix, 1995) e A arte da memória (UNICAMP, 2007).
  10. N.T.: KEYNES, J. M. Newton, o homem. In: COHEN, B. e WESTFALL, R. S. (org.).Newton: Textos, antecedentes, comentários. Rio de Janeiro, UERJ/Contraponto, 2002.
  11. KOYRÉ, A. Estudos de história do pensamento científico. Rio de janeiro, Forense Universitária, 2011, 3a ed.
  12. GALILEU. O ensaiador (1623). In: Bruno, Galileu e Campanella. São Paulo: Abril Cultural, 1988 (Coleção Os Pensadores), p. 119.
  13. LACAN J., Le Séminaire. Livre XXIV: L'insu que sait de l'Une-bévue s'aile à mourre, leçon du 15 février 1977 (inédito). N.T.: Em um escrito de Lacan, redigido alguns anos antes dessa aula do Seminário XXIV, já encontramos o aforismo "há saber no real": LACAN, J. Nota italiana (1973). In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 312); de fato, na tradução brasileira publicada, o que lemos é: "Existe saber no real", mas, no original francês, temos – "Il y a du savoir dans le réel": LACAN, J. Note italienne (1973). In: Autres écrits. Paris: Seuil, 2001, p. 308.
  14. N.T.: LEIBNIZ, G. W. Novos ensaios sobre o entendimento humano. In: Leibniz. São Paulo: Abril Cultural, 1988 (Coleção Os Pensadores).
  15. N.T.: SPINOZA, B. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
  16. N.T.: Ver, por exemplo: LACAN, J. O seminário. Livro 3: as psicoses (1955-1956). Rio de Janeiro: Zahar, p. 79 e ss.
  17. N.T.: Ver, por exemplo: PLANCK, M. Eight lectures of theoretical physics (1909). New York: Columbia University Press, 1915. Disponível na internet graças ao Gutember Project: http://www.gutenberg.org/files/39017/39017-pdf.pdf (Acesso em 21 de junho de 2012); PLANCK, M. The origin and development of quantum theory (1922). Oxford: Oxford University Press, 2010. Disponível na internet graças ao Gutemberg Project: http://www.gutenberg.org/files/33663/33663-pdf.pdf (Acesso em 21 de junho de 2012).
  18. LACAN, J. O seminário. Livro 23: o sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 133.
  19. MARX, K., ENGELS, F. Manifeste du parti communiste. Pékin: Les éditions en langues étrangères, 1975, p. 36-37. N.T.: A tradução dessas frases do Manifesto comunistaseguiu a versão francesa citada por Jacques-Alain Miller; para uma tradução brasileira publicada desse célebre texto:. MARX, K. e ENGELS, F. Manifesto comunista (1848). Rio de Janeiro: Garamond, 1998.
  20. LACAN, J. O seminário. Livro 23: o sinthoma..., p. 131. N.T.: No mesmo Seminário 23, a formulação sobre o real sem sentido aparece também na p. 112.
  21. N.T.: Talvez a referência a esse repente de Lacan evocado por Miller seja, literalmente: "Uma interpretação cujos efeitos compreendemos não é uma interpretação psicanalítica". LACAN, J. Respostas a estudantes de filosofia (1966). In: Outros escritos…, p. 218.
  22. N.T.: LACAN, J. O seminário. Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise..., p. 260.
  23. N.T.: SÓFOCLES. Édipo em Colono. São Paulo: Perspectiva, 2005.

* Conferência apresentada, em espanhol, no dia 26 de abril de 2012, em Buenos Aires, por ocasião do VIII Congresso da AMP. Transcrição: Paula Danziger. Revisão da transcrição em espanhol: Leonardo Gorostiza. Tradução para o português: Sérgio Laia. A tradução para o português, embora primeiramente realizada a partir do pronunciamento em espanhol, foi cotejada com a versão francesa, traduzida por Guy Briole, relida e editada por Jeanne Joucla, Victoria Paz e Guy Briole e publicada com a autorização de Jacques-Alain Miller.